O sensual, de uma forma só nossa

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quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A Face na Realidade. Conto. Tema: A mulher.

Prezados leitores, MINHA HOMENAGEM À JOVEM ESTUDANTE INDIANA DE 23 ANOS, VÍTIMA DE ESTUPRO COLETIVO.
                                A Face na Realidade - Conto

Inesperadamente, uma notícia que choca o mundo. Que dói em cada mulher. Mulher que quer ser, que quer exercer seu direito à vida. Que luta contra à desigualdade forjada pelos mitos religiosos e políticos. Que luta contra a submissão à Lei dos Homens.Mulher não tem Lei. Obedece-a simplesmente. Mulher que sente na carne e em seu íntimo a crueza dos  atos  masculinos - sem consciência humana, mas simplesmente animal.
Mulher que sente na realidade cotidiana o despreparo para viver num universo hostil a ela. Jamais imaginei que minha primeira crônica em 2013 seria esta homenagem póstuma, que reflete todos os estupros dos bilhões de mulheres que por isso passam, que sobrevivem ou morrem por.

             A FACE NA REALIDADE, CONTO CLASSIFICADO NO "CONCORSO LETTERARIO INTERNAZIONALE VOZES & VOCI 2012 MENZIONE D´ ONORE 
-CATEGORIA ORO
TEXTO: DI FONTE ALLA REALTÀ : JOANA ROLIM
PARTICIPAÇÃO COM DOIS CONTOS: A FACE NA REALIDADEESTRANHA MELODIA 

 Lançamento da Antologia Bilingue Vozes & Voci 2012 na Itália (Milão) na Livraria Internazionale IL LIBRO, às Horas 16:30 - 29 de novembro 2012.

 

A FACE NA REALIDADE

   Sentada num banco do parque, suada, cansada, olhava as pessoas andando, correndo. O aroma das árvores, no bosque denso, que me tapava o sol, me impregnava  de energia. Sem pressa, alternava a posição do corpo. Um cumprimento.
   ─ A escritora-poeta... Bom dia!
   ─ Bom dia! Ela leu meu livro de poemas sensuais!
   Ela espontânea. Eu espontânea. Ambas sorrindo. E começou o conflito. Atordoei. A 'ficha caiu'. Que sensação indescritível me inundou. Mas foi minha mente que gritou: 'O quê!' Confesso que me assustei. Meu mundo estava turvo. Respirei. Refleti. Que 'medo' esquisito me retesou? Eu não tinha mais controle sobre meus textos. E sabia do lema: 'Escritores' não tem medo. Eu estava com.
   Me espantava com a força dos seus textos em suas palavras marcadas pela ausência de submissão, pela certeza, denúncia na expressão, esperança pelo bem comum, pelo olhar na civilização. Os grandes escritores são forjados em situações que os erguem firmes, suas mãos materializam o tempo e o espaço. Sem o outro, mas com todos os outros. Como se faz isso? Criam seu universo e se fazem de deuses. No vazio, onde um tema que teima em ser, se aninha, constroem seu mundo-ficção-realidade. Compartilham. O livro nos pega de surpresa, ali vem o inédito, a permissão para espiar outro universo, o deles. Nós, pegos no flagrante, nos entregamos a seu convite-astúcia.
   ─ É assim? Onde a senha? ─ pergunto a eles.
   Aprendi e apreendi o mundo-invenção, invenção da vida que não foi, ou da vida que é, que oprime, destrói, exalta, celebra. Ou para me livrar dela. Criei meu universo de personagens e escrevi meus textos-ficção. Mesmo sabendo que sou o segundo sexo, como diz Simone de Bouvoir. Uma outra dimensão da realidade se fez, complexa. Um desafio para mim e para meu contexto. Insegura pela abertura das coisas? Que responsabilidade ter mexido fundo na minha alma e na do outro.
   ─ Para um sonho? Feliz e apreensiva?
   Ainda não tenho as respostas. Entrei nessa aventura. Que prazer desvendar um mundo em mim inconsciente, face a face com a realidade! Ouvi a palavra-caráter, a palavra-incentivo, a palavra-crítica (às vezes cruel). Vi boca-fechada-engolindo-a-inveja, a-indiferença, porta-na-cara, porta aberta, verbos de ação se fazendo e alternando a emoção. Tudo enfrentei! Por que o medo agora?
Alguém se sentou no banco, ofegante. Também cansada. Me virei para ela, ela não me olhou. Abriu uma garrafa d´água, sorveu-a sedenta no gargalo. Jovem, cabelos ruivos, sardas. Não consegui ver seus olhos. Ali estava uma realidade e uma história. Ainda não havia uma personagem. Água! Água!Água! Olhei o parque. Lá...ah! tem. Fui.
   ─ Sem gelo e sem gás, por favor.
   No chuveiro, meu corpo se deixava tocar por ele mesmo. O suor escorria na água tépida e minha mente torcia o passado.
   ─ Dafne! Dafne!
   ─ Escritora-poeta!... Que lindo! Que bálsamo!
   Sou mulher, produto-da-civilização, O Segundo Sexo. A mulher que se conforma, que reclama, denuncia?, obediente, sim, senhor, estou aqui, faço sim, já vou...não vou, não.... ou que sente os músculos da garganta que se apertam e abafam a fala até a sufocar. Quando desiste, eles se afrouxam e indicam o seu lugar. Eu me desafiei!
   Me deram um papel travado ─ pilhagem da cultura? Me exigiram decorado. Decorar eu decorei. E o cumpri, mais ou menos. Errava muito. Mas, olhos perdidos, expressão vazia por vezes, a rotina me embalava. Os limites me torturavam. Intuía um mundo diferente. Eram os livros que me puxavam, que faziam da minha inquietação uma certeza, ou que me ensinavam o jogo de descobrir. E de esconder. Quando menina, ao descobrir o sexual num poema, o escondi no forro do casaco. Dos livros proibidos, trocava a capa. E os devorava. 'Livros-fusão' e 'livros-confusão', assim os marcava, assim os separava. Os 'fusão' me mimavam, me iludiam, passavam. Os 'confusão' me provocavam com a polêmica astuta dos 'deuses', cuja palavra eu decifrava. Vibrava. Cabeça levantada, sorriso malicioso de quem descobria o mundo, eu adentrava num caminho desconhecido, a mim não mostrado. Eu o via! Eu o queria! O 'até onde' me laçava.    Havia fronteiras. Mas a poesia vencia, me pegava e eu com ela brincava e eu com ela ria e eu com ela atingia um outro existir.
   Estou na fronteira. Existe fronteira?
   Do lado em que estou, existe.
   E agora?Agora parei.
   Mas acabei de fazer um poema!
   Onde o obstáculo?
   Em um agora qualquer, com o corpo liberto, se deixando levar pelo sonho, os olhos armando a cena em busca de um momento indefinível ainda, eu repito com Pessoa: Que destino é o meu senão o de assistir ao meu Destino!
   Eu leio buscando o segredo do autor. As personagens o sabem. Perguntava a elas. Não me contavam.
   ─ Tola, você contaria o seu? Não!
   O livro só se fechava quando a realidade me chamava.
   ─ Por que me mentiam meu destino?─ Eu ainda não tinha lido a Simone.
  Me falta toda uma vida, desperdiçada em bancos de igreja. Cheirei incenso demais, ajoelhei demais, cabeça baixa e mãos espalmadas pairando no ar, porque amestradas, ouvi palavras vãs, mentiras em troca de nada. Me ensinaram um mundo plano e me fizeram segredo do mundo arrogante e das situações tortuosas que explodiriam. Em  mim.
   Na janela, o matiz vermelho e laranja de fim de tarde seduzia meu olhar. Ainda tenho medo. Mas já compreendi o que é escrever 'na carne'. Os escritores defendem seus textos contra tudo e contra todos, enfrentado-os com suas personalidades responsáveis.  Insegura, minhas forças ainda tateiam em busca de apoio. Estou decifrando o que é manipular um tema, uma palavra, um alguém inventado.
Minha vida molenga de mulher se mostra e se conflita com o contexto desigual em que perambulo, onde me busco inteira. Descobri a realidade-magia, o amor na poesia, o drama disfarçado que engana, o mundo que forma vidas, e a me defender com lápis e papel. Tenho certeza do que escrevo. Não tenho certeza de mim. Papéis se despedaçam. Não tenho cicatrizes na alma. Vou continuar escrevendo na solidão do instante, no caos de minhas experiências, no contar as histórias, mesmo que seja a de um estranho passando por mim. Quando quiser um afago, vou relembrar das palavras que fizeram deste texto uma partícula do meu universo.
   ─ A escritora-poeta... Bom dia!
   ─ Bom dia! Obrigada.
   No momento, escrevo a história da menina ruiva se fazendo personagem. Seus olhos são verdes.
                                                                   
                                                                       FIM

 P.S. A jovem indiana devia ter olhos negros. Todos os olhos das mulheres choraram por ela.